segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O MITO DE SISIFO - A integridade não necessita de regras.

Sísifo fora condenado pelos deuses a realizar um trabalho inútil e sem esperança por toda a eternidade: empurrar sem descanso uma enorme pedra até o alto de uma montanha de onde ela rolaria encosta abaixo para que o absurdo herói mitológico descesse em seguida até o sopé e empurrasse novamente o rochedo até o alto, e assim indefinidamente, numa repetição monótona e interminável através dos tempos.
O inferno de Sísifo é a trágica condenação de estar trabalhando em algo que a nada leva. Ele amara a vida e menosprezara os deuses e a morte. Por tal insolência fora castigado a realizar um trabalho sem esperança. Sua rebeldia poderia ter sido motivo de reverência por insurgir-se contra o espectro da morte e o poder dos deuses, mas fora castigado por uma justiça duvidosa.
O momento chave no castigo de Sísifo está naquele instante em que a pedra rola monte abaixo e Sísifo sabe que ele deve ir atrás dela e tentar, em vão como sempre, empurrá-la para o alto do monte e além.
Dessa ótica unilateral, não seríamos todos Sísifos que transformamos nossa vida diária em uma enorme pedra que levamos ao topo para que role ladeira abaixo e volte a ser erguida no dia seguinte na rotina do trabalho que se repete sem variação ou renovação? Não estaríamos empenhados num grande esforço, numa grande luta, numa grande causa, num grande sacrifício que poderia não estar levando a nada, a exemplo do sisifismo da mitologia?
Não! Se conseguirmos dar um novo sentido a nossa “pedra, ao que podemos chamar de momento da consciência adquirida, o mesmo momento onde Sisifo vislumbra o conhecimento que o torna superior ao seu destino, mais forte do que o seu rochedo e feliz porque, apesar da tortura, descobriu o sentido e o segredo de uma vida onde o destino lhe pertence. Afinal, onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse?
Talvez fosse possível para Sisifo mudar a rotina absurda de dias, anos e séculos. Preso, no entanto, à mitologia, criado que fora para cumprir esta finalidade pedagógica, nada pode mudar esse herói trágico e absurdo.
Mas para nós, seres humanos, existe a possibilidade de modificar a nossa rotina absurda, de lançar longe o rochedo das misérias, da ignorância, da exclusão e da inconsciência; deixar de repetir os dias, as angústias, os anos e as vidas sem variação ou motivação alguma para mudar nosso próprio destino, porque a sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.
Nos dias de hoje, a pedra de Sísifo adquire outros significados, imposições, contornos e nomes, mas continua sendo a expressão da vitória trágica do homem sobre o seu destino porque, mesmo consciente da tortura que foi condenado, Sisifo preferiu permanecer dono de seu destino e manter sua integridade, sem se render a ira dos Deuses, pois a integridade não tem necessidade de regras.

"Deixo Sisifo no sopé da montanha. Encontramos sempre o nosso fardo, mas SSisifo ensina a fidelidade superior que nega aos Deuses e levanta rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse Universo enfim, sem dono, não lhe parece estéril nem futil, Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só, um mundo. A própria luta para atingir os píncaros, basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sisifo feliz".

in: CAMUS, Albert. O mito de Sisifo, ensaio sobre o absurdo. Lisboa - Livros do Brasil

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